JEAN-PAUL BOURRE
OS VAMPIROS
(1986)
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA
PRIMEIRA PARTE
O Vampirismo, uma doença de alma
Muitos dos que dormem no pó da terra acordarão, uns para a vida eterna, outros para a ignomínia, para a reprovação eterna.
DANIEL (XII 1-3)
Segundo as lendas e as crenças o vampiro seria uma criatura da noite, um não morto absorvendo a vitalidade dos vivos para escapar ao túmulo. Construiria dessa forma uma espécie de imortalidade mágica na região das trevas, que separam a vida da morte.
Os vampiros existiram?
Processos verbais e crônicas do século XVIII são explícitos. No decorrer de certas exumações, sob o controlo das autoridades locais, desenterraram-se cadáveres em perfeito estado de conservação: «O corpo não libertava qualquer cheiro, tinha sim, pelo contrário, mantido o seu estado de frescura sem que apresentam-se o mínimo sinal de decomposição. O sangue que saía da boca do cadáver era tão fresco como se de uma pessoa sã se tratasse. O cabelo, a barba e as unhas tinham crescido e a pele começava a separar-se do corpo, enquanto uma nova se formava. O rosto, as mãos, os pés, estavam igualmente conservados.» (Asfeld, 1730.)
Na maior parte dos casos; neste tipo de sepulturas (contrastando com as outras) registram-se tenebrosas vibrações. Fazem-se na aldeia o levantamento de muitas e misteriosas mortes, ocorridas na proximidade do cemitério. Animais degolados, homens e mulheres exangues, crianças mortas por debilidade e outros tantos casos de enlouquecimento.
Os agentes da polícia e os religiosos encarregados de fazer o inquérito dirigiram-se por fim ao cemitério, como era inevitável!
Os túmulos são abertos e o coração do cadáver é trespassado com o auxílio de uma estaca, a cabeça cortada à machadada e o caixão cheio de cal viva. Processos verbais, são redigidos e assinados pelos oficiais do rei e autenticados pelas autoridades locais.
Em 1776, D. Agustin Calmet, padre beneditino e abade de Senóvia, redigiu o seu Tratado sobre as aparições dos espíritos, reencarnações, anjos, demônios, e vampiros da Silésia e da Morávia, dedicado ao príncipe Carlos de Lorena, Bispo d’Olmütz.
Relata-nos ele: «Citam-se e ouvem-se testemunhas, examinam-se situações, observam-se os corpos exumados procurando sinais vulgares, como a mobilidade, a flexibilidade dos membros, a fluidez do sangue, a incorruptibilidade do corpo. Se tais pormenores forem na verdade observados concluir-se-á que são eles quem molesta os vivos, pelo que são entregues ao carrasco a fim de que ele os queime.» E mais adiante, adverte do perigo que paira: «Este mal que espalha o terror, castiga particularmente a Hungria, a Polônia, a Silésia, a Morávia, a Áustria e a Lorena. Quem de- le nos livrará, pois não deixará de aumentar caso não se puser cobro a tal situação?»
E conclui por fim: «No meio de tudo isto, não vejo senão trevas e dificuldades, cuja solução deixo aos mais hábeis e ousados.»
Superstições, alucinações, lendas ou presenças autênticas vindas de além túmulo? A caça está aberta...
Quando se estuda o vampirismo pode dizer':"se que se trata de uma via tenebrosa, de um culto da noite cuja divindade central seria o não morto visto que o vampiro cultiva a sua personalidade demoníaca. Ele ama o seu próprio corpo e tenta, por todos os meios mágicos, evitar a sua desintegração.
Os adeptos deste culto mudam de nome segundo as regiões, os dialetos, os costumes. O jesuíta Gabriel Rzazcynsi explica em 1 721: «Há mortos que mesmo no túmulo conservam a avidez de devorar e que, à boa maneira dos espectros, fazem as suas vítimas pela vizinhança; os polacos dão-Ihe o nome especial de Upiers e Upiercza. A Europa central foi, durante muito tempo, o feudo destes senhores da.noite, capazes de interromper o processo de decomposição do corpo, suspensos entre a vida e a morte nessas zonas de obscuridade que as antigas religiões povoavam de diabos, de demônios.
Nas províncias da Alemanha, em Hasse, Wurtenberg, Brunswick, afirmava-se que o cadáver-vampiro, uma vez saído do caixão, tinha o poder de se transformar em ave noturna e voar durante a noite à procura das suas vítimas.
Mais perto de nós, o professor Vukanovic assinalou danos causados pelos vampiros na Sérvia, nos anos de 1933,1940, 1947 e 1948, principalmente na província de Kosovo-Motohija.
Em 1970, o feiticeiro inglês David Farrant foi condenado, sem apelo nem agravo, a cinco anos de 'prisão por violação e profanação de sepultura. E no prosseguimento de numerosos testemunhos acerca de uma «presença» no cemitério de Highgate, no Norte de Londres, que Farrant e os seus adeptos tentaram um ritual de invocação do vampiro. Os jornais ingleses seguiram esta rocambolesca aventura durante várias semanas. Falou-se no caso de um caixão arrombado, de um cadáver decapitado por Farrant, de símbolos mágicos pintados sobre as sepulturas, de obsessões, de pesadelos que apavoravam os habitantes de Highgate, de animais degolados pelas veredas do cemitério, etc.
Assim o vampirismo, que tem como figura principal a sombria e arrogante figura do famoso príncipe Drácula – embora estejamos longe das epidemias vampirescas dos séculos XVIII e XIX –faz sempre os seus discípulos. Propõe um método para vencer a morte, utilizando o fascínio e o desejo, jogando com o medo e a obsessão. E uma espécie de espiritualidade contraditória que procura evitar a decomposição do corpo, mantendo os instintos e os impulsos selvagens do homem para além túmulo. O oposto às espiritualidades libertadoras que partem as amarras e comunicam ao homem o sentimento de eternidade, a união com Deus.
A magia negra do vampiro permitiria obter uma eternidade fictícia, uma espécie de estado letárgico intermediário. O vampirismo seria uma doença da alma.
Para Siméon le Nouveau Théologien – eremita do século X – só a perfeição espiritual permite vencer o túmulo e libertar-se do tempo e da morte, escreve ele nos seus Capítulos Teológicos: «Morre sem na verdade morrer todo aquele que atingir a perfeição, porque viva em Deus, ao qual está unido, como que tendo deixado de viver em si próprio.»
Na outra extremidade, Stanislas de Guaita, esoterista e mestre da Ordem Cabalística de Rosa-Cruz, declara: «Proceder aos ri tos sanguinários num túmulo entreaberto, agrava talvez a situação: é sugerir à alma embaraçada ainda nas peias magnéticas do cadáver a tentação de se manter assim, é estender-lhe o cálice do abominável vampirismo.»
O vampirismo está sempre associado a um drama, uma maldição, uma doença psíquica hereditária. Na epopéia negra e vermelha dos vampiros apareciam casais amaldiçoados, homicidas megalômanos tais como o príncipe VIad Drakul, grandes famílias atingidas por um mal misterioso, como os Bathory ou os Cillei na Romênia do século XV.
Todos eles fascinados por uma espécie de vontade mórbida, rapidamente transformada em neurose, em obsessão. Cultivam desejos dos mais perturbadores, tais como Bárbara Cillei e seu irmão partilhando da mesma cama ou VIad Drakul empalando os seus prisioneiros e fazendo-se servir de faustosas refeições, entre cadáveres suspensos de lanças e piques.
Vive-se febril e loucamente a sexualidade e a morte. O leito nupcial torna-se fúnebre pelas maldições e juramentos terríveis nele feitos. «Voltarei!...» Uiva Bárbara Cillei antes de morrer. Herman, seu irmão, invocará os demônios da antiga magia para que a irmã ressuscite. As crônicas romenas da região da Transilvânia afirmam que o êxito teria sido completo. Bárbara Cillei saiu do túmulo visitando o castelo de Varazdin, onde tem a sua sepultura. Coincidências ou epidemias diabólicas? Em 1936, na aldeia de Kneginecc – perto de Varazdin – várias pessoas novas, rapariguitas, pereceram de maneira estranha. «Algumas morreram em poucas semanas, em dois ou três meses no máximo, sem se lhes conhecer qualquer doença. Todas tinham sobre a garganta duas ou três manchas azuladas. Muitos destes jovens acordavam durante a noite atormentados por horríveis pesadelos.»
O ritual do exorcismo praticou-se nas ruínas de Varazdin por um sacerdote ortodoxo da igreja do Oriente. Rapidamente pararam as manifestações. Dizem os velhos de Kneginec que o Grande Exorcista libertou a aldeia, mas ninguém esclarece se os restos mortais de Bárbara Cillei, morta no século XV, foram ou não exumados.
Os processos verbais que relatam os fenômenos vampirescos demonstram-nos através de que mecanismos o não morto se propaga e contamina quantos leiam. Citemos por exemplo o inquérito conduzido pelo tenente Buttner, do regimento de Alexandre de Vurtemberga, a 7 de Janeiro de 1732, o Visum et Repertum, que intrigou Luís XV e o duque de Richelieu:
«Tendo ouvido dizer por mais de uma vez que na aldeia de Medwegga, na Sérvia, os pretensos vampiros provocavam a morte de muita gente sugando-lhes o sangue, recebi a ordem e missão, através do comando superior de Sua Majestade, para que o caso fosse esclarecido beneficiando, para questão de inquérito, do apoio de oficiais e de dois Unterfeldscherer.
»Perante o capitão da Companhia de Heiduques Gorschitz, Heiduck, Burjaktar e os outros heiduques mais antigos do local, examinamos os fatos. Estes, logo que interrogados, nos relataram unanimemente um caso ocorrido, havia cinco anos, com um heiduque da região (um heiduque é um membro da nobreza local) chamado Arnold Paul que ao cair do carro de feno partira o pescoço. Mais tarde, passados alguns anos, teria contado repetidas vezes ter sido vítima de um vampiro, perto de Casanova, na Pérsia turca.[1][1]
»Teria por esse fato resolvido comer alguma terra no túmulo de um vampiro, esfregando-se com o sangue do mesmo, uma vez ser voz corrente evitar assim a maléfica influência. Todavia, vinte ou trinta dias após a sua morte havia gente a queixar-se que Arnold Paul os atormentava, chegando mesmo a matar quatro pessoas. Para que se acabasse com este perigo, o heiduque aconselhou os habitantes dessa região a desenterrarem o vampiro e assim foi, quarenta dias depois da morte deste. Encontraram-no em perfeito estado de conservação; a carne não decomposta, os olhos injetados de sangue fresco que também escorria do nariz e dos ouvidos, sujando-lhe a camisa e a mortalha. As unhas das mãos e pés estavam soltas, e novas unhas cresciam em seu lugar, pelo que se concluiu tratar-se de um arqui-vampiro. Assim, segundo a norma do sítio, atravessaram-lhe o coração com uma estaca.
»Mas enquanto se procedia a esta ação, jorrou do corpo uma enorme quantidade de sangue, acompanhada de um lancinante grito. Nesse próprio dia foi queimado, e as cinzas lançadas ao túmulo. Aquela gente afirmava que as vítimas dos vampiros transformam-se, por sua vez, em vampiros. Por tal razão se decidiu proceder da mesma forma para com os quatro corpos atrás referidos.
»O caso não ficou por aqui porque o dito Arnold Paul atacara não só pessoas mas também gado!
»Aqueles que diziam ter comido carne de animal contaminado e que disso vieram a morrer ficaram presumíveis vampiros, tanto que no espaço de três meses, (em dois ou três dias) sem nenhuma doença previamente detectada, pereceram dezessete pessoas das idades mais diversas.
»Heiduque Joika faz saber que a sua nora, Staha Joica, tendo-se deitado quinze dias antes de perfeita saúde, soltou durante a noite um grito medonho, acordou em sobressalto tremendo de medo, queixando-se de ter sido ferida no pescoço por um homem, filho do heiduque Milloe, que morrera havia quatro semanas. Desde então definhando hora a hora, morria oito dias depois.
»Por todas estas coisas nessa mesma tarde, depois de ouvidas as testemunhas, fomos ao cemitério acompanhados pelo heiduque da aldeia, para que se abrissem os túmulos suspeitos e se observassem os corpos.
»Esta investigação revelou os seguintes fatos:
»– Uma mulher de nome Stana, ao dar um filho à luz e no seguimento de uma curta doença de três dias, morreu aos 20 anos e 3 dias confessando que, para se livrar de toda a espécie de influências, se esfregara com sangue de vampiro. O seu estado de conservação era excelente. Aberto o corpo descobriu-se uma grande quantidade de sangue fresco na cavitate pectoris.
»– Miliza, uma mulher com 60 anos que morreu após três meses de doença e enterrada noventa e tal dias depois, tinha ainda uma quantidade de sangue em estado líquido.
»– Os oficiais do rei enumeram ainda onze pessoas da mesma aldeia, mortas em circunstâncias estranhas mantendo sangue fresco e concluem a seguir, no seu relatório: ‘Depois de devidamente registrado o que atrás foi exposto, ordenamos à ciganagem que passava que decapitassem todos esses vampiros. Foram queimados os corpos e espalhadas as cinzas por Morávia, enquanto, devolviam aos caixões, os corpos encontrados em estado de decomposição.’ EU AFIRMO e os Unterfeldscherer, QUE TODAS AS COISAS SE PASSARAM TAL COMO ACABAMOS DE RELATA-LAS, em Medwegya, na Sérvia, a 7 de Janeiro 1732.»
Assinatura: os oficiais do rei... As testemunhas. Belgrado, 26 de Janeiro 1732.
É nesta atmosfera de caça aos vampiros que a igreja se deparou com a mais terrífica blasfêmia: a maldição do sangue, sangue este de que o Antigo Testamento nos fala como portador do Espírito...! E, pois, pecado mortal por excelência: Um crime contra o Espírito!
E no entanto, nas histórias de vampiros, a morte aceita este estado de vida intermédio, esse sono do morto-vivo encerrado no seu caixão, tendo o poder de vagabundear durante a noite como ave noturna que descreve círculos concêntricos ao aproximar-se da sua presa.
E de noite que o duplo astral do vampiro se transforma em lobo, fogo-fátuo, morcego. Está ligado aos vivos por forças subterrâneas, ligações secretas que vêm prender-se como anzóis ao sono de futuras vítimas. Na versão de Bram Stoker – autor do Drácula – a hora do vampiro situa-se entre a meia-noite e a uma hora da manhã, mas as invocações do morto-vivo fazem-se ao pôr do Sol.
O sono não protege. A consciência de quem dorme fica anestesiada, a vontade entra em letargia e qualquer espírito malfeitor pode vir ocupar o seu espírito deixando-lhe ficar uma imagem, um pesadelo que manterá ao despertar sob a forma de uma obsessão.
Pela manhã, a vítima do vampiro lembra-se de ter tido um sonho estranho que lhe deixa um profundo cansaço, um estado de extrema debilidade. Ela experimentou aquilo a que os exorcistas do século XVIII chamam: a VIOLAÇAO DA ALMA.
Sintomas de uma manifestação oculta que escapa ao túmulo, ou desequilíbrios psicopatológicos?
Cada um explicará o fenômeno à sua maneira, agarrando-se às suas crenças e terrores, mas isso não modificará em nada a natureza dos sintomas. São de tal forma características que um padre exorcista ou os velhos aldeões que «sabem», conseguem detectar a passagem de um vampiro.
O estudo dos processos verbais e das aparições de vampiros nos séculos XVIII e XIX –sobretudo na Europa central – permite-nos abrir o dossier médico-psíquico do homem e da mulher tornados vampiros.
Uma mulher ainda nova que recebeu a visita noturna de um vampiro, acorda pela manhã lembrando-se de um pesadelo vago, impreciso mas aterrorizante. Desde logo, com as visitas noturnas o seu comportamento vai-se sucessivamente modificando. A fraqueza e a prostração parecem ser os primeiros sintomas. Seguidamente estará sujeita a perdas de consciência, novos pesadelos cada noite um tanto mais precisos, êxtases negros onde os ritmos deslizam com a lentidão de um veneno. Porque é bem de um veneno que se trata. A vítima – que não entrou ainda na «cadeia» dos adeptos – vive num estado permanente de sonambulismo e súbitas entradas em transe, que surpreende e horroriza quantos a rodeiam dada a modificação repentina.
Acorda de manhã, umas vezes com dores de cabeça, com enxaquecas sem aparente razão de ser, com a sensação de pesadelos de que se não lembra e a idéia vaga de ter dormido com um peso sobre o peito, uma impressão de asfixia durante o sono.
Outras vezes tem um acordar diferente. Olhos abertos e vítreos, ela persegue ainda o pesadelo noturno, de olhar vago.
Este torpor não durará além de alguns instantes mas o dia decorrerá entre dois mundos, com ausências, com incompreensíveis sonolências e, por vezes, comas com a duração de dois ou três minutos.
A doença desenvolver-se-á rapidamente até à morte. Trágico começo no decorrer do qual a vítima se torna «adepta» e cairá no abismo. Ela já não poderá abandonar a cama, e a palidez é tal que nem a febre diminuirá. Deixa de conhecer os membros da família. O sono é cada vez mais freqüente e mais profundo, dando-lhe cada vez mais o fácies da morte. O pulso fraco, os olhos parados. Interrogam-se entre si os especialistas. Um deles crê tratar-se de uma «histeria cataléptica».
Raymond Rudorff – que explorou os «arquivos do Drácula» – descreve maravilhosamente um dos transes vividos pela vítima do vampiro:
«Depois de ter interpretado as mais encantadoras melodias, Adelaide atacou temas mais violentos. Um brusco entusiasmo se apoderou dela; os olhos começaram com um brilhar sobrenatural; empalideceu, vacilou, mas recuperou, e de novo, batendo as teclas com vigor redobrado, lançou-se numa série de áreas ainda mais violentas que as primeiras.
»Estranhas visões desfilaram diante dos meus olhos enquanto ela tocava energicamente acordes vibrantes: tempestades em plena montanha, o roncar de mar revolto, assembléias noturnas de bruxos, noite de Walpurgis[2][2] sobre qualquer cume descampado...
»Adelaide tornou-se cada vez mais pálida, a música cada vez mais violenta até que, largando um grito, Conrad se levanta num salto dizendo:
»– Basta! Por amor de Deus!
»Tremendo dos pés à cabeça, Conrad aproximou-se do piano enquanto Adelaide se levantava olhando-o com ódio.
»– Adelaide – insistiu ele –, suplico-lhe, não toque mais nada! Você está a fazer mal a si própria!
»A transformação que se operou nela foi espetacular. A doce e amável rapariga já não existia. Em seu lugar, erguia-se diante de nós uma cara lívida em fúria, transtornada por uma cólera intensa e, de voz ríspida e fria (que me gelou o coração), vociferou: «Não obedeço senão ao meu senhor!» Sacudida por terrível tremura, deu alguns passos e caiu redonda aos pés de Conrad.»
Todas as manifestações de vampirismo pertencem a estas atmosnegras. Nada sustém esta fascinação pelo abismo, este culto do terror!
SEGUNDA PARTE
Desde o despertar da humanidade que o homem vem praticando o culto do sangue para comunicar com os espíritos secretos da natureza, para adivinhar o enigma do universo e pôr fim à angustiante pergunta: «como vencer a morte?»
Conta-se que Horácio fez comparecer duas mulheres mágicas para que se invocassem as divindades e se compreendessem as coisas do porvir: «Primeiro dilaceram com os dentes uma pequena ovelha cujo sangue foi preparado numa cova para que viessem ali as almas dos mortos. Em seguida colocaram, perto, duas estátuas, uma de cera, outra de lã. A de cera era mais pequena e subordinada da outra. Esta a seus pés, como que suplicante, apenas esperava a morte. Ao fim de diversas cerimônias mágicas, a imagem de cera foi derretida e consumida».
O sangue permitia atrair os espíritos e dar-lhes um rosto, uma forma.
Lucien de Samosate descreve os vampiros na sua Histoire Veritable. Dá-lhes o nome de Onosceles, e afirma que estes seres se alimentam, não apenas do esperma mas também da carne e do sangue de estranhos, atraídos pelas suas carícias. A flor do alho não tem qualquer poder contra os vampiros, contrariamente ao que acontece com a raiz de malva que os obriga a, fugir, confessando os crimes que cometeram.
«À noite», escreve ele, «chegamos a uma ilha pouco importante, toda habitada por mulheres (pelo menos assim o pareciam) falando a língua grega. Aproximam-se, estendem-nos as mãos e beijam-nos. Adornadas como se fossem cortesãs, todas novas e bonitas, vestidas com túnicas até aos calcanhares. O nome da ilha é Cabalusse, e a aldeia é Hydamardie. Cada uma destas mulheres, como que tomando conta de nós, conduziu-nos a sua casa e deu-nos hospitalidade. Por minha parte, um mau pressentimento tornava-me hesitante. Com um olhar atento, descobri ossadas e caveiras de um grande número de homens. Apetecia-me gritar, pedir ajuda aos meus companheiros, dispormo-nos à guerra preferindo afinal nada fazer.
Agarrei unicamente a raiz de malva que trazia comigo, suplicando que me livrasse dos perigos que me ameaçavam. Um instante passado, e enquanto ela se ocupava em me servir, noto que as suas pernas não são iguais às de outras mulheres, pois tem patas de burro. Desembainhe a espada e, agarrando-a, acorrentei-a e obriguei-a a que tudo me confessasse. Resistiu, mas acabou por me dizer que eram mulheres marinhas chamadas Onoscéles, e que devoram todos os estranhos que ali abordam. ‘Nós embriagamo-los (explica ela) para que se deitem conosco e enquanto dormem, então, degolamo-los’.» Ouvindo estas palavras, deixo-a ainda acorrentada e subo ao telhado onde, com todas as minhas forças, chamo os meus companheiros. Quando chegaram, contei-lhes tudo e mostrei as ossadas conduzindo-os junto da minha prisioneira; eis que, transformada em água, desaparece. Mergulho a espada ao acaso nessa água que se transformou em sangue».[3][3]
O sangue torna-se o elixir da vida, o mesmo princípio de vida e de morte. Nada escapa à sua lei. Ele, só por si, contém as origens do homem e do mistério da sua morte. «Os demônios impuros», escreve Hallywell, «em Mélampronéa (1681) sentem prazer em sugar o sangue quente dos homens e dos animais. As feiticeiras oferecem a Satanás uma parte do sangue delas no momento da assinatura do pacto...» Magia noturna, juramento de amor, combate, vitória... nada escapa à lei do sangue. É ele que permite selarem-se contrato, invalidá-los, matar, comunicar com os mortos.
»Salve, Pai dos deuses! Clamam os padres da morte no antigo Egito. Salve vós os sete Hacthor com os cornos sangrentos a ornamentar-vos! Salve senhores do céu e da terra! Vinde a mim, e que o casal seja um só, uno no mesmo túmulo, forte e incorruptível, ligado pelo sangue e água, pelo terror e pela beleza que descerão vivos a este lugar. Se vós não chegardes a uni-los, eles que estão prontos a receber o vosso raio, eu Nasha, incendiarei Bousiris e queimarei Osíris.»
Os sacerdotes do culto dos mortos não temem lançar um desafio aos deuses supremos, blasfemar para forçar os espíritos do além a manifestarem-se, a tomar sobre si o defunto para a sua longa viagem noturna.
Toda a história mágica dos homens relata a história misteriosa do sangue, o seu poder sobre o destino do homem. O homem transporta a obsessão do sangue através das raças e das civilizações. Podem os homens morrer, desaparecer os impérios, que a humanidade – a mais que velha humanidade – não esquece a presença atemorizante do sangue, a sua presença oculta no interior do corpo, o seu mistério. Cada molécula parece dissimular uma terrível verdade: o próprio segredo do homem e do universo.
Neste túmulo vivo
depositei meu sangue
É desta forma que os adeptos do vampirismo acreditam no supremo poder do sangue. Afirmam que este atravessa o túmulo acordando o duplo, que escapa à decomposição. E o túmulo torna-se a prova alquímica onde a matéria negra trava o seu último combate, em que ela se transforma em Maelström[4][4] de energias vivas, refazendo vida a partir das cinzas.
O vampirismo cultivou sempre a inversão e negação dos valores espirituais do Evangelho.
Logo que Jesus morreu na cruz, a lança do centurião trespassou o lado e imediatamente saiu sangue que derramou o espírito de Deus.
É nesta fonte de vida que os cristãos virão beber, para que possam ter o direito à ressurreição da carne e à imortalidade.
Através do corpo imolado do Cristo, Deus expande-se e integra-se no mundo.
«Se alguém tem sede, venha a mim! Beba quem crê em mim» declarou Jesus no Templo, em Jerusalém.
A Escritura anuncia: Do seu seio, correrão fontes de vida. É do lado aberto de Cristo que procede o Espírito e se derrama sobre os homens. No momento da Eucaristia, o sacerdote lembra as palavras de Cristo: «Tomou o cálice e dando graças o abençoou e deu aos seus discípulos dizendo: Tomai e bebei todos, este é o cálice do meu sangue, da nova e eterna aliança, derramado por vós e por todos os homens em remissão dos pecados». Assim o sangue de Cristo renova a aliança com Deus, propaga o Espírito e destrói a morte.
A partir dos santos mistérios, os adeptos do vampirismo construíram a sua crença quanto à incorruptibilidade do corpo, do sangue que renova a vida e impede a morte, sem nada purificar, conservando as máculas e os miasmas psíquicos, os instintos da morte, o medo e o ódio... prendendo-se ainda ao mundo dos sentidos e do prazer.
A obsessão do vampirismo é o medo da morte e a necessidade do mundo (apesar do túmulo), e recusar morrer e abandonar o corpo. Todas as patologias estão ligadas para criar assim o monstro noturno, bebedor de sangue, em rebelião contra a luz.
Na mitologia do vampiro sabe-se que o morto-vivo teme a luz do dia porque ela poderá destruí-lo, reduzindo-o a cinzas.
Compreende-se assim porque se diz – no culto do vampiro – que a cruz de Cristo o faz recuar e evita a sua saída do túmulo, pois ela simboliza a luz de Cristo, vencedor da morte destruidora de cada parcela ou átomo de obscuridade que transfigura e ressuscita o mundo e cujo sangue derramado liberta o Espírito. O crucifixo não é um elemento folclórico para filmes de vampiros. É a transfiguração face às forças vegetativas da morte.
Na Romênia do século XV, Drácula – o príncipe Vlad Drakul, senhor de Valáquia –pertencia à Ordem do Dragão, confraria militar de iniciação fundada por Segismundo I da Hungria. Drac – a raiz do nome Drácula – significa Dragão, símbolo de imortalidade e de vitória sobre a morte.
Tradicionalmente, dragão é o guardião do sangue eterno. Para os taoístas, os adeptos que tenham vencido o túmulo tornam-se imortais voadores e tomam a aparência de um dragão. Na magia chinesa, as correntes de energia que atravessam a terra são chamadas «veias de dragão». Da mesma forma, as energias telúricas vindas do subsolo seriam o «sangue do dragão», o poder contido nas suas «veias».
Nas narrações mitológicas o dragão faz ninho nas entranhas da terra, vomita fogo, guarda a entrada da caverna ao fundo da qual protege um monstruoso tesouro. O dragão representa a força, a energia telúrica, a atração, as forças da gravi...
Everton_Santana